quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

A Arte da Digestão Transcendental

Estava eu a circular num grande centro comercial quando, ao colidir o carrinho de compras que estava eu a utilizar contra o carrinho de uma alucinada consumidora, pude perceber o quanto tal supermercado diminuiu o espaço de circulação interna em prol de prateleiras e balaios com mais produtos à venda. As prateleiras convencionais já não se sustentam por si só; é necessário ocupar cada espaço, de cada corredor, com produtos que são empurrados ao consumir como se estivessem a gritar: compra-me! consome-me! devora-me! Tal situação fez-me perceber que o nível de intoxicação consumista atinge níveis elevados em tais estabelecimentos e que, na verdade, tal situação não ocorre apenas com produtos físicos, mas igualmente com aquilo que a indústria rotulou de entretenimento.

E, ao pensar em todo este estado de coisas, lembrei-me de festas, viagens e momentos de lazer, quando se consome até o momento através de máquinas digitais, pois tiramos cada vez mais fotografias, em geral na resolução mais alta que o produto suporta, mas não investimos em aprender a utilizar os recursos que tais máquinas oferecem e, não raro, ocorre uma inquetação quando alguém se propõe a buscar a melhor configuração antes do disparo. Ao querer registrar tudo o que se vive, acaba-se por não se viver o momento pura e simplesmente. De forma semelhante, desejamos acesso à internet com banda larga com velocidades de 3, 5 ou 10 megabits para poder baixar mais e mais coisas; mas nem tempo possuímos para consumir tudo que se está a baixar. Unidades de armazenamento lotadas de filmes que não veremos, de músicas que não escutaremos ou de livros que não leremos. Às vezes, a simples sensação de obter algo e possuir a ilusão de poder usufruí-lo a qualquer tempo torna-se mais constante que o prazer ímpar de descobrir as sensações e reflexões que estão ocultas em tais manifestações humanas que estão, ou deveriam estar, à margem da sociedade de consumo.

Meu alter ego acredita que a rejeição pragmática de tudo que é vendido pela indústria de consumo é a melhor estratégia para quem deseja manter-se desintoxicado do lixo que a sociedade de consumo produz diariamente. Vivemos num momento ímpar na história da humanidade, onde o conhecimento está disponível facilmente; o desafio, hoje, é por selecionar aquilo que deve ser visto, lido ou escutado, abrindo espaço para a digestão intelectual necessária a quem deseja não se tornar apenas um macaco consumidor de qualquer imundície que lhe seja oferecida.

Meu alter ego orgulha-se dos livros que não leu, dos filmes que não assistiu e das músicas que não ouviu. Meu alter ego quer redescobrir aquilo que meu ego pensa que já descobriu. Viver como alguém que está preso numa ilha deserta: o que levar consigo sabendo-se que não haverá nada mais a consumir ao longo dos anos? Pois estar em tal ilha é perceber a finitude da própria existência, longe dos ideais contemporâneos de consumo fútil e doentio. A simples idéia de consumir a mesma coisa por várias vezes repetidamente já causa asco na maioria dos mortais, pois seria necessário utilizar-se de uma habilidade que é contrária ao que a sociedade de consumo ensina: a arte da digestão transcendental, isto é, pensar nas razões do criador, nos motivos explícitos ou implícicos, nas coincidências e referências, pensar e repensar dez vezes a mesma questão, sem uma razão ou motivo que não seja o simples prazer de aprofundar-se no abismo existencial que tais criações remetem. Sem uma utilidade, um objetivo, uma razão, porém com o pleno sentimento de digerir adequadamente aquilo que se está, não a consumir, mas a contemplar.

Namaste!

sábado, 10 de outubro de 2009

O Clube da Beleza

"I need to remember. Sometimes there's so much beauty in the world. I feel Iike I can't take it and my heart is just going to cave in."

Ricky Fitts ao mostrar o seu mais belo vídeo para Jane Burnham


1999 foi um grande ano na história do cinema. Naqueles dias, havia um clima de inquietação no ar, as pessoas estavam ansiosas para a virada de século e milênio, na esperança que tal evento modificasse alguma coisa em suas vidas. Na prática, como se sabe, a virada só ocorreu na passagem de 2000 para 2001, apesar de grande parte da humanidade ter comemorado um ano antes. A humanidade gosta mais de ver gestos que ouvir razões é uma frase de Nietzsche que se aplica com maestria nesse caso.

Para o cinema, 1999 foi o ano do último trabalho de Stanley Kubrick, Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados); a obra-prima de Almodóvar e o seu Todo Sobre Mi Madre; Magnolia, espetacular em seus 188 minutos, do diretor Paul-Tomas Anderson. Grandes filmes que estava eu a rever recentemente. Meu alter ego acredita que uma película que não merece ser revista não deve sequer ser vista. Afinal, se aquilo que se vê não é capaz de, senão transformar o sujeito, ao menos lhe instigar a pensar em algo diferente, então se trata apenas de entretenimento. E somente um macaco de zoológico gostaria de entreter-se, pura e simplesmente.

E outras duas boas películas de 1999 são dois filmes que possuem algumas semelhanças interessantes entre si: American Beauty (Beleza Americana) e Fight Club (Clube da Luta). Ambos retratam a história de homens comuns, que venceram na vida, atingindo o ideal estadunidense de bom emprego, carro do ano e estabilidade financeira, porém são profundamente infelizes existencialmente. Meu alter ego acredita inclusive que Jack é na realidade Lester Burnham mais jovem, caso o primeiro não tivesse sofrido forte intervenção de seu alter ego.

Imagine-se o sofrimento pelo qual passa um indivíduo cujo maior prazer de seu dia é masturbar-se no banho matinal antes de se deslocar ao trabalho (It's all downhill from here). Ou ainda do jovem Lester, que possui tudo aquilo que poderia desejar, mas precisar consumir mais e mais, comprando coisas para o seu apartamento, de modo a torná-lo cheio como uma maneira de mascarar o próprio vazio de sua existência. Um está sedado e o outro não consegue dormir. Uma jovem ninfeta e o seu poder de sedução colocam o velho Jack de volta à vida, fazendo-o sentir o prazer perdido em sua juventude. Grupos de ajuda para alcoólatras ou cancerígenos tem o poder de acalmar o jovem Lester e fazê-lo dormir novamente (Babies don't sleep this well). É que, para ele, perceber o sofrimento humano frente a frente o ajuda a resgatar a sua humanidade. Tal estratagema, em verdade, cai por terra quando o jovem Lester percebe que uma outra pessoa também utiliza da mesma farsa para se sentir melhor. Marla é o alter ego feminino dele e a sua presença em seus grupos de apoio anulam o efeito catártico e, assim, a insônia volta a atacar-lhe implacavelmente.

Para o velho Jack, a questão se resolve quando volta a fumar maconha, praticar exercícios físicos, escutar rock and roll e libertar-se da dominação de sua mulher e conseqüente casamento frustrado. Para o jovem Lester, o problema é um pouco mais complexo: fico a imaginar a dor de alguém que explode com sua vida ao forjar um acidente em seu próprio apartamento, o qual possuia todas as suas coisas mais valiosas (that condo was my life)! A explosão, arquitetada por seu alter ego, representa a opção radical de zerar uma vida estúpida e sem sentido. Mas simplesmente aceitar tal verdade significaria morrer efetivamente e a única maneira possível de isso acontecer foi através do seu alter ego, criando uma situação psicológica na qual se está deixando um estilo de vida por uma fatalidade e não por uma opção consciente. Afinal, quem em sã consciência explodiria o seu próprio apartamento e todas as suas coisas?

A insatisfação manifestada por ambos personagens é, na realidade, uma insatisfação social contra um modelo de sociedade que é dominado pelo sistema financeiro e pelas grandes corporações, onde tudo se justifica pelo lucro, onde tal escória ousa determinar o que é certo e o que é errado. E é curioso que a sociedade livre, que se orgulha de ser democrática e de permitir aos indivíduos a liberdade de escolha, tornou-se a sociedade mais desigual de toda a história da humanidade! E muitos acreditam que pelas vias democráticas conseguirão mudar o status quo... Na verdade, louqueja meu alter ego, para se mudar qualquer coisa é preciso primeiramente mudar-se a si mesmo. Até hoje a humanidade acreditou que modelos políticos e sociais pudessem transformar o homem... Lester e Jack mostram que a transformação individual diante da realidade opressora da sociedade contemporânea talvez seja a resposta mais apropriada para quem deseja transcender aos ordinários valores que lhes são impostos em suas vidas.

O cerne da questão de ambas películas está na insatisfação do homem contemporâneo com o estilo de vida da sociedade de consumo, que tem nos Estados Unidos o país exportador por excelência do modelo american way of life. Ter um bom emprego, o carro do ano, vencer na carreira e com isso ganhar dinheiro para poder comprar coisas é tudo que alguém desejaria? E as questões existenciais? E as questões filosóficas? E a verdadeira arte? Há algum espaço nesse modelo de sociedade para estas coisas que são em essência inúteis? Tal sociedade utilitarista simplesmente rejeita tudo que não tiver caráter utilitarista... Ricky, o voyeur que filmava coisas estranhas e percebia beleza onde ninguém mais percebia, diz que precisa se lembrar que há muita beleza no mundo. Cercado de falsidade e superficialidade, não pode esquecer que há na vida muito mais que aquilo que a mediocridade corrente o faz crer. Assim como a sociedade contemporânea simplifica tudo, quantifica tudo, produtifica tudo, presa a dicotomias próprias da razão cartesiana, é preciso lembrar-se que a arte, em uma visão transcedental da vida, é justamente o que torna possível a própria existência e que tal existência pode ser rica em sentimentos, emoções e idéias, que estão à margem da sociedade contemporânea, cuja fragilidade e superficialidade foram tão bem retratadas em American Beauty e Fight Club.

Namaste!

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Clube da Luta (Fight Club, 1999)

» Direção: David Fincher
» Roteiro: Jim Uhls, baseado em livro de Chuck Palahniuk
» Gênero: Drama
» Origem: Estados Unidos
» Duração: 140 minutos

» Sinopse: Jack (Edward Norton) é um executivo yuppie, trabalha como investigador de seguros, mora confortavelmente, mas sua ansiedade o faz conviver com pessoas problemáticas como a viciada Marla Singer (Helena Bonham Carter) e a conhecer estranhos como Tyler Durden (Brad Pitt). Misterioso e cheio de ideias, Tyler apresenta para Jack um grupo secreto que se encontra para extravasar suas angústias e tensões através de violentos combates corporais.
Fonte: Adoro Cinema


Beleza Americana (American Beauty,
1999)

» Direção: Sam Mendes
» Roteiro: Alan Ball
» Gênero: Drama
» Origem: Estados Unidos
» Duração: 121 minutos

» Sinopse: Lester Burham (Kevin Spacey) não aguenta mais o emprego e se sente impotente perante sua vida. Casado com Carolyn (Annette Bening) e pai da "aborrecente" Jane (Tora Birch), o melhor momento de seu dia quando se masturba no chuveiro. Até que conhece Angela Hayes (Mena Suvari), amiga de Jane. Encantado com sua beleza e disposto a dar a volta por cima, Lester pede demissão e começa a reconstruir sua vida, com a ajuda de seu vizinho Ricky (Wes Bentley).
Fonte: Adoro Cinema

sábado, 15 de agosto de 2009

A Insustentável Leveza do Escafandro

Assisti recentemente à película francesa Le Scaphandre et le Papillon (O Escafandro e a Borboleta), que versa sobre a história de Jean-Dominique Bauby: um homem ordinário que é vítima de um acidente vascular cerebral e perde a totalidade de movimentos do corpo, à exceção do movimento de um olho. Nenhum dano sofre a sua mente, que permite ao sujeito ver e ouvir tudo que se passa ao seu redor, sem - no entanto - poder interagir com qualquer pessoa de forma mais efetiva.

Ao acordar e dar-se conta de sua situação fatídica, Jean-Dominique entra em profundo desespero. Uma enfermeira o ajuda a dizer palavras através do método binário sim e não, sendo uma piscadela para sim; duas, para não. As letras são soletradas uma a uma, em ordem de ocorrência da língua francesa. A primeira frase que Jean-Dominique olhetra é eu quero morrer. Com efeito, que razões deveriam existir para alguém em sua condição desejar continuar a viver? A morte para alguém já morto seria a melhor opção. Afinal, a vida implica em movimento e sem movimento não há vida. Tudo que se move é vivo, tudo que está parado é morto. Com o passar dos dias, porém, Jean-Dominique passa a aceitar a sua condição e, após estabelecer um canal eficiente, ainda que lento, de comunicação, decide escrever um livro, no qual divaga a respeito de sua condição e de seus mais profundos e belos sentimentos sobre a vida e tudo que há.

E, ao pensar e refletir sobre todo este estado de coisas, tive um devaneio no qual desejei por algum momento tornar-me um escafandro e vivenciar a experiência única de morrer estando vivo. Afinal, como espectador da vida poderia visualizar toda a beleza e singularidade de tudo que há, numa contemplação sem fim. Depois disso, um dilema passou a consumir-me e não consigo parar de nele pensar: é preferível viver estando morto ou morrer estando vivo? Isto é, é preferível viver uma vida ordinária, desperdiçando horas e mais horas em escritórios sem vida, cujo único objetivo é produzir riquezas de modo a aumentar o lucro dos cães-acionistas; viver na neurose da sociedade contemporânea, repleta de violência e superficialidade; viver na sociedade de consumo e tornar-se a si mesmo um produto descartável e medíocre, ou morrer ao perder todos os movimentos, mas poder apreciar a vida, ter todo o tempo do mundo, tornar-se para a vida um ser que observa e reflete sobre tudo que vê e sente e, como se isso não fosse o suficiente, poder escrever o livro mais inusitado da história do homem? Um livro que foi olhetrado por alguém que divagou por horas pensando em encaixar as frases que deveriam compô-lo. Letra a letra, sílaba a sílaba, palavra a palavra.

Tal dilema, embora esteja a me atormentar, é motivo de riso pelo meu alter ego. É que para ele esse é um dilema falso, pois estabelece duas condições que não são necessariamente contraditórias e não necessariamente conduzem ao mesmo fim. É possível, e muitas vezes necessário, ser um escafandro ao abster-se do movimento e contemplar pura e simplesmente tudo que há. Sem culpa, sem desejo e sem ansiedade. Por outro lado, ser um escafandro preso pelo sentimento de dever e submissão, vivendo uma vida sem a vontade de transcendência, em especial a transcendência pela arte, preso a valores falsos da sociedade de consumo, significa a morte antes de morrer. Nesse sentido, louqueja meu alter ego, Jean-Dominique viveu os melhores meses de sua vida quando esteve preso ao seu corpo, porém a sua mente, como uma borboleta, pôde voar através do pensamento reflexivo, da contemplação, da auto-crítica em relação ao seu estilo de vida anterior e, finalmente, da aceitação de sua condição de forma ímpar. É possível que o seu maior objetivo ao escrever o livro fosse transmitir a idéia de que o homem jamais deveria fazer ou aceitar uma situação cuja condição lhe impedisse de transcender e vivenciar o instante do estar-vivo com um sorriso próprio daqueles que jamais poderiam levar a vida a sério demais, daqueles que são descrentes de tudo, mas ainda assim buscam algum significado existencial para além da vida medíocre que é oferecida pela sociedade contemporânea.

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O Escafandro e a Borboleta (Le Scaphandre et le Papillon, 2007)

» Direção: Julian Schnabel
» Roteiro: Ronald Harwood, baseado em livro de Jean-Dominique Bauby
» Gênero: Drama
» Origem: França
» Duração: 112 minutos

» Sinopse: Jean-Dominique Bauby (Mathieu Amalric) tem 43 anos, é editor da revista Elle e um apaixonado pela vida. Mas, subitamente, tem um derrame cerebral. Vinte dias depois, ele acorda. Ainda está lúcido, mas sofre de uma rara paralisia: o único movimento que lhe resta no corpo é o do olho esquerdo. Bauby se recusa a aceitar seu destino. Aprende a se comunicar piscando letras do alfabeto, e forma palavras, frases e até parágrafos. Cria um mundo próprio, contando com aquilo que não se paralisou: sua imaginação e sua memória.

Fonte: Adoro Cinema

sexta-feira, 24 de abril de 2009

A Arte que Transcende

Estava eu a navegar despreocupadamente na grande rede quando deparei-me com a notícia da condenação em primeira instância dos idealizadores do The Pirate Bay, sítio que funciona como um buscador de arquivos que utiliza a tecnologia BitTorrent e possibilita a milhões de pessoas em todo mundo compartilhar arquivos através da conexão direta entre usuários (também conhecida como p2p - peer to peer). Do lado oposto, a grande indústria de sanguessugas do entretenimento estadunidense (formada por Sony BMG, Universal, EMI, MGM, entre outros, etc.) continua a sua caçada na tentativa de impedir que as pessoas compartilhem aquilo que ela chama de produto e rotula de propriedade intelectual para restringir o acesso a arte produzida.

Ao ler a repercussão do caso, ocorreu-me pensar a respeito da arte. Então comecei a me questionar e perguntei a mim mesmo: a arte não é tudo aquilo que o espírito humano pode produzir cujo principal objetivo é a transcendência em razão da perplexidade do estar-vivo? E o artista não é aquele que ama mais a sua obra do que a si mesmo, pois dessa forma atinge a transcendência? Na nojenta sociedade capitalista, a arte é colocada numa caixa e rotulada como produto, cujo sucesso é proporcional às vendas que tal produto atinge. Com esse pensamento, a manifestação artística está limitada a um grupo restrito de indivíduos que podem pagar o preço para obtê-la. E não podem, segundo o direito intelectual, compartilhar com amigos o produto adquirido, devendo consumi-lo individualmente e, preferencialmente, sem alarde.

Considero o verdadeiro artista alguém que, por amar a sua obra mais que a si mesmo, transcende a estupidez ordinária do cruel tipo homem. E a sua obra é fruto de seu esforço, dedicação e inspiração. Merece, pois, ter seu trabalho reconhecido e remunerado. Quando milhares de pessoas têm acesso a tal conteúdo, ocorre o reconhecimento por excelência de todo verdadeiro artista. Triste a sociedade que não vive intensamente as manifestações artísticas e não valoriza seus artistas. Meu alter ego devaneia que uma sociedade sadia é aquela que reconhece e permite que seus artistas vivam e supram suas necessidades sem precisar corromperem-se na capitalização do homem e seus produtos. Um CD ou DVD que venda milhares de cópias é sinônimo de sucesso; porém, isso é apenas um dado relevante no universo capitalista e para quem acredita nesse modelo de sociedade. Uma músicas ou filme que seja compartilhado por milhares de pessoas é, igualmente, um sucesso. Nesse caso, exclui-se da arte o componente de produto, pois é apenas o desejo de indivíduos de transcender com o que é belo que motiva as pessoas a compartilhar entre si a arte que ajuda a sua transcendência.

A indústria de sanguessugas, em especial a estadunidense, quer limitar o acesso das pessoas e embutir a idéia que compartilhar arte é um crime, já que são as detentoras dos direitos autorais de tais obras. Muitas vezes, adquirem tais direitos dos próprios artistas, que sendo os criadores perdem a propriedade sobre seus produtos. Meu alter ego questiona-se se alguém pode ser dono de uma obra de arte, inclusive o seu próprio criador. Afinal, ninguém pode nada criar sozinho; toda inspiração e idéias que ajudam o artista a conceber o seu trabalho é resultado direto do meio que o sujeito está inserido; as suas experiências, vivências e sentimentos são fruto de sua existência em sociedade. Ora, jamais se ouviu falar que Platão, Newton ou Schopenhauer reclamaram direitos autorais sobre suas idéias. Nesse sentido, a sociedade contemporânea representa um modelo decadente no qual o direito autoral é um entrave na elevação da condição humana através da arte. Na verdade, pensamos que pensamos, pensamos que criamos e pensamos que somos donos de nossos supostos pensamentos. E por pensar assim, julgamo-nos detentores de obras de arte e decidimos quem pode e quem não pode acessá-la. Mas na realidade toda idéia que esteja manifestada dessa forma é de propriedade da humanidade, e não de indivíduos ordinários que nada criam e visam apenas ao lucro com a exploração do trabalho alheio.

Infelizmente nem toda manifestação artística pode ser reproduzível tão facilmente como uma poesia, um filme ou uma música; eventos que só se justificam no momento em que ocorrem, como peças de teatro ou apresentações de dança, ou ainda as artes plásticas, que produzem exemplares únicos. Para as demais categorias, no entanto, a Grande Rede representa um momento ímpar na história da humanidade por possibilitar o compartilhamento de arquivos entre amigos virtuais. Naturalmente, tal fenômero incomoda as grandes gravadoras e estúdios, pois lhes rouba o mercado da exploração artística e, assim, diminui seus lucros de forma astronômica. O Pirate Bay, assim como outros sítios do gênero, é temporário. Pode ser eliminado por decisões judiciais. O desejo, que deveria ser uma necessidade, de transcender através de arte é inato ao ser humano, e quiçá nunca se extinguirá. Uma vez que a Grande Rede proporciona os meios necessários à realização de tal desejo, não haverá nenhuma empresa, cão-acionista ou juiz de direito capaz de frustrar o direito de transcendência. Os pseudo-artisitas que apenas desejam fama e dinheiro estão condenados ao fracasso, pois o modelo no qual produzem a sua pseudo-arte está morrendo. Então, pois, que dêem espaço ao verdadeiro artista, aquele que transcende a si mesmo através de seu trabalho e não visa ao lucro acima de tudo, mas essencialmente à transcendência de si e de seus semelhantes. Este será recompensando e terá o seu reconhecimento através de outros mecanismos que não a pura e simples venda de produtos.

É falsa a idéia de que o artista morrerá de fome ao não poder vender sua obra em forma de produto; tal idéia é inclusive o maior argumento da indústria sanguessuga. Na verdade, a indústria remunera o artista com migalhas de centavos do grande bolo que é a venda de arte como produto, isto é, a produção em série de enlatados cujo objetivo é aniquilar o espírito transcendental da verdadeira arte. Compete também ao artista e a sociedade que compartilha livremente o resultado de seu trabalho encontrar um novo mecanismo de remuneração ao artista. Dessa forma, elimina-se o atravessador que nada cria e possibilita ao verdadeiro artista manter-se ativo com seu trabalho e, igualmente, um universo maior de pessoas podem acessar-lhe e contribuir para uma sociedade na qual a arte assuma um papel de agente transcendental e não de mero produto de entreterimento, como hoje ocorre.

Namaste!

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# O Artista, a Obra e a Grande Rede

"Ao assistir a festa estadunidense do Oscar 2008 resolvi fazer o que já tinha feito no ano anterior, isto é, selecionar alguns filmes para assistir. Naturalmente o único local onde consegui localizar tais filmes foi na Grande Rede, através de programas de compartilhamento de arquivos.
"

segunda-feira, 30 de março de 2009

O Homem e a Mente

Estava eu a observar o lusco-fusco de um dia comum quando, ao organizar algumas coisas, deparei-me com um livro atribuído a Bhagwan Shree Rajneesh, também conhecido como Osho, chamado Além das Fronteiras da Mente. Comecei a lê-lo por curiosidade, já que nada conhecia a respeito de seu autor. Osho é considerado um líder espiritual para uns, revolucionário para outros. Em relação a suas idéias, a principal contida nesse livro é a idéia de não-mente e como tal idéia pode levar o cruel tipo homem ao caminho da iluminação.

Por não-mente entende-se o estado de consciência no qual a mente que possuímos é colocada em segundo plano e nenhum pensamento, sentimento, absolutamente nada, pode interferir nesse estado de consciência que se deseja obter. Para os budistas, alguém se torna um buda quando atinge tal estado. Sidarta Gautama é freqüentemente chamado de o buda, pois é a primeira pessoa que se sabe a ter atingido tal estado. Mas Osho não se considera um budista, nem tampouco segue religiões, pátrias, ideologias ou filosofias. Osho orienta seus seguidores a buscar apenas e exclusivamente o caminho da iluminação pessoal, utilizando como técnica a meditação, que é uma forma de se obter o esvaziamento da mente.

Tal estado de não-mente é deveras difícil de ser obtido. Nascemos sem mente e com um cérebro e a sociedade encarrega-se de moldá-la ensinando-nos todas as coisas do mundo, de modo a que nossa mente, que julgamos precisamente que seja nossa, fique tão ocupada com pensamentos, preconceitos morais, deturpações, sentimentos dos mais variados tipos etc. que não consiga sequer perceber que tudo que existe para o homem é apenas a forma como ele interpreta as coisas que os cercam. Isto é, o homem criou o mundo tal qual ele conhece; criou inclusive o conceito de deus e engana-se continuamente acreditando que deus criou o homem!

Um dia é definido com 24 horas, mas se sabe que, na realidade, o intervalo de tempo que se convencionou chamar de dia é apenas uma ficção, uma convenção, isto é, na realidade não existe um dia de 24 horas, mas apenas o nome e suas propriedades que a espécie humana julgou conveniente em determinado momento. A matemática e a lógica são, ambas, ficções a respeito da realidade das coisas, interpretações interessantes sobre determinados fenômenos, mas, ainda assim, não passam de interpretações. Assim como as religiões e seus deuses, juntamente com seus dogmas, não passam de interpretações, meras especulações a respeito do estar-vivo. Algumas são ridículas e patéticas, como o lixo demencial relacionado ao christianismo; outras mais interessantes e respeitáveis, como a idéia de luta contra o sofrimento, princípio essencial do budismo.

Meu alter ego vê semelhanças interessante entre o método de Osho de esvaziamento da mente e a contestação da realidade que cerca o homem, num esforço consciente que os verdadeiros filósofos devem fazer para atingir alguns de seus propósitos, sendo um dos mais importantes a destruição dos preconceitos morais, sociais, religiosos e científicos, num esforço contínuo de, em certa análise, também esvaziar a sua própria mente. No entanto, tal método busca, em essência, o término do sofrimento, partindo da premissa budista que viver implica em sofrer. Ora, para fazer isso, não há outro caminho a não ser a destruição do desejo, pois o sofrimento humano existe porque existe o desejo.

Zaratustra, o herói nietzschiniano que passou dez anos na montanha, vivendo com animais, retornou ao convívio dos homens ordinários anunciando o além-do-homem e não foi compreendido. Ora, o que Zarathustra lá fazia que não meditar e esvaziar a sua mente? Ambos, Osho e Zarathustra pretendem a superação do cruel tipo homem; cada um a seu modo, mas ambos envergonham-se do tipo homem e pretendendo superá-lo. Um, desprezando o desejo; outro, amando-o a cada momento. E neste ponto reside uma grande divergência com o fundamento budista do desejo: não estaria, o homem, ao matá-lo, matando também a própria vida? Pois a própria vida, como a conhecemos, não é puramente desejo? Não me refiro aos desejos fúteis presentes na sociedade capitalista, consumista e mecanicista dos dias atuais, que vê no dinheiro uma justificativa em si, que busca adquirir coisas a todo custo e nunca se satisfaz com aquilo que obtém, que vive miseravelmente com uma multidão de miseráveis e protege-se cada vez mais a si e ao seu patrimônio, e ainda julga que vive numa sociedade livre! Refiro-me aos desejos mais nobres do tipo homem, como o desejo do conhecimento, o desejo da arte, do belo, do riso, do sexo... Osho poderia dizer que tais desejos não são, de fato, desejos: são necessidades do espírito humano. Mas a linha tênue que separa o conceito de necessidade e desejo faz-me questionar freqüentemente a respeito da luta contra sofrimento; aceitar os desejos mais nobres como algo essencial à vida, aceitando o sofrimento inato que tal escolha representa, ou retornar ao estado animal de não-mente e, assim, evitar totalmente o sofrimento? Ao que me lembrei de algumas palavras de Zaratustra, no capítulo Da Visão e do Enigma:

"...Oh, meus irmãos, eu ouvia um riso que não era um riso de homem — e, agora, devora-me uma sede, um anseio, que nunca se extinguirá.

Devora-me um anseio por esse riso: oh, como posso, ainda, suportar viver! E como, agora, suportaria morrer!"

Namaste!

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Louquejares Relacionados

# Das Interpretações que se Tornam as Coisas em Si
"Gosto de pensar que no estar-vivo precisamos de meia dúzia de conceitos bem fundamentados para poder pensar decentemente. Sim, poucas coisas que, naturalmente, não são valorizadas.
"

terça-feira, 10 de março de 2009

O Câncer Cristão

Estava eu a navegar na Grande Rede quando deparei-me com uma notícia que dizia que uma menina de apenas 9 anos de idade sofreu aborto em um hospital impávido colossensse, visto que a mesma foi emprenhada de seu próprio padastro e, de quebra, concebeu gêmeos. Uma situação que por si só produz sofrimento a todos os envolvidos, em especial à menina grávida. Legalmente, em casos de estupro ou risco de vida à gestante, o aborto é autorizado por lei. Dessa forma, o hospital apenas cumpriu com o seu dever, salvando a menina e eliminando o produto de um ato criminoso e doentio, destes que somente o cruel tipo homem pode executar.

Pois juntamente com a notícia a respeito do trágico episódio, havia outra que dizia que a Igreja Católica, na figura asquerosa do arcebispo José Cardoso Sobrinho, condenou o procedimento realizado, alegando que o mesmo era um assassinato da vida e ia de encontro com as doutrinas católicas. Assim, excomungou médicos, a mãe e a própria garota. É que para o catolicismo não pode haver qualquer interferência humana que interrompa a vida de um ser humano, independente das circunstâncias.

Este é o primeiro ponto a ser analisado: como o cristianismo é patético e ridículo como religião. Tivesse tal fato ocorrido numa civilização budista, certamente não haveria alarde, pois para tal religião o elemento essencial a ser combatido é o sofrimento, em oposição ao cristianismo, que combate o pecado. E o próprio conceito de pecado, essa idéia falsa que foi utilizada por séculos para subjugar mentes fracas, é risível. O cristianismo e seus símbolos mais sagrados (bíblia, cruz, salvação, etc.) nada mais são que a representação de uma doença cancerígena contra a própria vida, visto que seus representantes estão doentes; afinal, somente um doente mental poderia aceitar o prosseguimento de tal gravidez, que culminaria com a morte da mãe e seus filhos. O cristianismo é contra a vida porque incuta nas pessoas idéias equivocadas a respeito da própria vida: o celibato produz religiosos pederastas, o jejum maltrata o corpo e enfraquece a mente e a idéia do pecado ajuda a criar uma sociedade doente: afinal, o bom cristão é aquele que peca e se arrepende. O cristianismo existe para que as pessoas pequem. O cristão que não peca não tem utilidade. Não importa quão grave seja o erro, basta o arrependimento para o sujeito ser salvo. E é através do jogo psicológico da culpa e aversão à vida que os cristãos produziram tantos estragos em dois mil anos de história. Hoje, felizmente, a sua força como instituição é bem menor que em outros tempos e possibilitou à menina de 9 anos realizar o aborto e, assim, salvar a sua própria vida.

Meu alter ego louqueja que as religiões são bengalas que ajudam os homens mais preguiçosos a viver uma vida que os afastem das dúvidas existenciais mais profundas que somente a espécie humana é capaz de conceber. É-lhe dado uma explicação, um caminho, uma orientação. Satisfeito com isso, ele pára de se questionar, de buscar outro caminho e simplesmente segue o rebanho acreditando naquilo que lhe foi dito. Nesse ponto, o budismo é mais digno que o cristianismo, pois o caminho que leva o indivíduo à iluminação (e não salvação, porque ninguém precisa ser salvo!) é um caminho a ser percorrido individualmente e apenas por vontade própria.

No impávido colosso, existem muitos católicos. E um número maior ainda de católicos não-praticantes. Essa é, aliás, uma farsa estúpida que é impossível de compreender. Como alguém pode ser algo que não pratica? Como um jogador de futebol pode ser jogador de futebol se não joga futebol? Como um piloto de avião pode ser piloto se não pilota aeronaves? Na verdade, devaneia meu alter ego, o católico não-praticante é um sujeito que não tem mais paciência para as tolices da Igreja Católica, mas é preguiçoso para ir adiante, buscar outro caminho e prefere ser e não-ser ao mesmo tempo, com uma falsidade alarmante.

É que, na verdade, toda mudança exige esforço e poucos realmente estão dispostos a questionar o status quo, especialmente quando o assunto tem caráter religioso. Porém, existem tantas coisas menos ruins a quem precisa acreditar em algo, em relação ao cristianismo, que me causa espanto que pessoas aparentemente lúcidas e sadias dêem alguma importância para o que pensa a Igreja Católica. Crer em deus ou em deuses, crer na ciência ou na filosofia, nos próprios homens; todos podem buscar um sentido para a existência e é saudável que assim o façam. Entretanto, tal conhecimento deve emergir de dentro do próprio indivíduo e ninguém pode fazer o trabalho pelo outro; na melhor das hipóteses, orientá-lo a respeito do caminho a seguir. O cristianismo não orienta, ele determina o caminho através de seus dogmas e todos que padecem desse mal devem procurar curar-se antes que o câncer atinja o nível mais elevado de sua existência.

Namaste!

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Lost e a Humanidade

Estava eu a baixar um episódio da quinta temporada da série Lost quando, ao rever alguns episódios anteriores da famosa série televisiva estadunidense, um louquejar ocorreu-me: Lost perdeu a sua humanidade. E, em função disso, boa parte do meu interesse por ela também estava por perder-se. Afinal, os escritores optaram por tornar os personagens super-heróis à medida que a série está a avançar, esquecendo-se do seu caráter humano.

Lost, uma série cujo tema é por si só interessante e envolvente: um grupo de indivíduos cujo avião cai numa ilha misteriosa busca sobrevivência, enfrentando os diversos perigosos que tal ilha representa. Esse foi o elemento que norteou a série em suas duas primeiras temporadas. Nas seguintes, há uma tendência de desumanização dos personagens, criando um mundo mágico aonde tudo é possível, inclusive apelando para viagens no tempo, de modo a tornar a série mais fantasiosa e apelativa que verdadeira.

Ora, não há nada de glamoroso em encontrar-se perdido numa ilha deserta. Qualquer ser humano ao se ver em tal situação enfrentaria enormes dificuldades em sobreviver num ambiente inóspito. Muitos sucumbiriam em poucas semanas. Todo animal fora de seu habitat natural tem a tendência em sucumbir. Essa é uma realidade aceitável. A humanização dos personagens passa necessariamente pelo sofrimento constante de estar-se privado de uma vida civilizada. Em Lost, ao contrário, todos exibem um jeito blasé de ser que é incompatível com a situação que enfrentam: tornam-se mestres em manipular armas de fogo, sobrevivem dias inteiros sem alimentar-se adequadamente, dormem em qualquer lugar, caminham quilômetros tranqüilamente e raramente adoecem. Sem contar que alguns homens conseguem tempo e meios para aparar sua barba e cabelo perfeitamente e as mulheres, para tratar de sua aparência de forma semelhante quando estavam em seu habitat natural.

Ao experimentar ficar algumas semanas preso numa ilha deserta, qualquer ser humano desesperar-se-ia, sentindo os mais profundos sentimentos de medo, de dor e de solidão. Esse é o elemento humano que a série perdeu, tornando seus personagens super-heróis superficiais que tudo podem e nada têm medo. A exploração do drama psicológico de indivíduos perdidos tornaria a série muito mais interessante e mais próxima à realidade do indivíduo ordinário que lhe assiste. Lost tem seus próprios méritos, em especial pela forma ímpar de construção da sua narrativa e consegue salvar-se num oceano de besteiróis típicos do cinema estadunidense. No entanto, poderia transcender a si mesma não se tornando previsível como está a ocorrer. Perdidos estão os escritores e produtores da série, que esqueceram do caráter humano que foi justamente o que levou ao sucesso da mesma ao grande público.

Namaste!

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

A Busca da Felicidade e o Eterno Retorno

Estava eu a navegar despreocupadamente na Grande Rede quando, ao ler uma notícia a respeito do tão esperado capítulo final de uma novela impávido colossensse, não pude deixar de conter o riso ao ler tal notícia. Abrindo outro sítio, detive-me por alguns minutos e pude perceber que, na verdade, tal novela segue o mesmo padrão dicotômico que divide as pessoas em boas e más e as ações em certas ou erradas, assim como também o faz o cinema estadunidense. Mais tarde, assisti a 5 minutos de tal pseudo-produção artística e um louquejar ocorreu-me: como, no final, os bons vivem felizes para sempre e os maus pagam por seus atos, morrendo, sendo presos ou coisa do gênero.

Pois seja: tal fórmula tem origem em preconceitos morais que dividem a humanidade em duas: os bons, justos e corretos, e os maus, injustos e sem caráter. O cristianismo, que sustenta que existe um Reino dos Céus exclusivamente para os bons após a morte, constitui o alicerce por trás de tais pseudo-produções, já que a lição que se pode deduzir da trama é que o importante é ser bom, que no final o sujeito é recompensado por isso. Ora, se se imaginar que dos 150 capítulos de uma novela, em 149 os bons sofrem e apenas no último atingem a felicidade, poder-se-ia analogicamente supor que tais capítulos representam a vida interna do sujeito ordinário, e o último capítulo representa a sua morte e entrada no reino dos céus, para a felicidade eterna. Por isso, suponho, muitos gostem de assistir a novelas ou a filmes em função desse componente fantasioso, já que com isso podem manter viva a esperança de felicidade, confrontando a vida de sofrimento e dor de seu dia-a-dia com uma possibilidade de transcendência individual.

E, ao pensar neste estado de coisas, lembrei-me da teoria do Eterno Retorno, proposta por Nietzsche: trata-se de um soco no estômago de quem acredita em felicidade no pós-vida. Nela, tudo que existe sempre existiu, não há criador, o tempo é infinito, mas a totalidade de coisas que existem, não. Dessa forma, tudo retorna, todos os momentos da vida do sujeito, as coisas mais pequenas, as dores, o sofrimento, tudo retorna... e da mesma forma, na mesma ordem e seqüência. Tal pensamento, em síntese, nos diz que os 149 capítulos de nossa vida se repetem infinitamente no futuro, bem como já ocorreram no passado, por infinitas vezes. E, o melhor de tudo, é que não há o tal último capítulo. Sim, não há felicidade e tampouco o Reino dos Céus! Tudo que há é a vida mundana, a qual ainda há de se repetir até o infinito. Tal pensamento representa a morte da ilusão cristã, ou do nirvana, ou da justiça divina, ou qualquer outro elemento niilista negador da vida, confirmando que a existência, para o ser humano, precede e governa a essência, tal qual Sartre afirmava.

Então, após desligar a televisão do mundo-do-faz-de-conta do último capítulo, estava eu a pensar sozinho nas implicações de um eterno retorno quando, ao relembrar a biografia de Nietzsche, pensei comigo mesmo: será possível que um homem que tenha vivido miseravelmente em sua época, com uma saúde precária e aparentemente sem sucesso em suas relações afetivas e também sem o reconhecimento de seu trabalho, sabendo que passaria os últimos 10 anos de sua vida em estado demencial, escolheria - caso pudesse - retornar eternamente? Não apenas os momentos de genialidade e alegria, mas também todo o sofrimento que teve de suportar? Como alguém pode escolher sofrer eternamente e, no seu caso, viver infinitos anos em estado demencial? Tal visão não estaria muita próximo ao inferno cristão, que diz que a repetição de todo o sofrimento é eterna?

Sendo o idealizador de tal teoria, rapidamente imaginei que sim, que Nietzsche escolheria viver a vida que viveu da mesma forma, com toda a dor e decepções que lhe ocorreram. Para que isso seja possível, entretanto, louquejei que compete ao ser humano desvencilhar-se da dicotomia moral e do pensamento lógico-racional, incorporando o sofrimento como elemento ativo e inerente à condição humana: nascer é sofrer, viver é sofrer, morrer é sofrer. A vida implica em sofrimento e a aceitação de tal sofrimento constitui-se na verdadeira vitória do ser humano contra o absurdo de estar-vivo. O budismo erra ao combater o sofrimento através da eliminação do desejo; negar o desejo não é equivalente a negar a própria vida?

A felicidade tal qual os fracos a concebem, sem nenhuma dor, é a felicidade que somente os cães conhecem, pois lhes faltam a consciência de sua finitude. Nós, seres humanos, rejeitamos o rótulo de animal e, por isso, carregamos o fardo da consciência eternamente! Ao cruel tipo homem resta aceitar que tal felicidade de último capítulo é algo tão efêmero que, ao ser buscada como um ideal de vida, torna a própria vida infeliz! E é por isso, suponho, que ainda hoje tantos continuam a acreditar que, no final, serão felizes. Resta-lhes descobrir o que farão quando, supondo que isso seja possível, atingirem a tal felicidade que tanto buscam.

Tenho uma suposição e gosto de nela pensar: ao não buscar ser feliz, ao aceitar o absurdo existencial de forma honesta, a tolerância ao sofrimento aumenta; ora, quem tem a coragem de aceitar e até aprender a saborear o seu sofrer, não estará muito próximo de atingir a verdadeira felicidade? E, dessa forma, não quererá repetir tudo novamente, pois terá compreendido e aceitado a essência da vida e, especialmente, do absurdo existencial?

Namaste!

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"Dando um início efetivo as divagações que aqui me proponho divago a respeito do que chamei no post intro de felicidade como princípio para uma existência débil. É senso comum para a maioria dos mortais que o objetivo final de sua existência resume-se no enfadonho: quero ser feliz!
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